Valete, Sérgio Godinho, Paulo Flores, Maria João e Karyna Gomes são alguns dos 22 músicos que na quinta-feira dão um espectáculo em Lisboa como homenagem ao rapper e activista moçambicano Azagaia, consagrado herói nacional pelo povo moçambicano. Leia também o que sobre o agora homenageado escreveu, aqui no Folha 8, em 29 de Dezembro de 2017, o também emblemático activista angolano Sedrick de Carvalho.
L ê-se na informação que promove o evento: “Consagrado herói nacional pelo povo moçambicano e com repercussão internacional, Edson da Luz deixa um legado e reportório musical que desconstrói o período pós-colonial e o presente de descolonização, transversal a Portugal e a todos os países de expressão portuguesa”.
“Mano Azagaia”, como foi carinhosamente apelidado, ficou célebre pela crítica aberta à governação em Moçambique (da Frelimo desde a independência) e por dar voz aos problemas da população, de tal forma que em 2008 chegou a ser questionado pela Procuradoria-Geral da República (PGR).
As rimas não passavam na rádio e televisão públicas e os deputados da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), no poder desde a independência, apontavam-no como intérprete da oposição.
O rapper morreu em 9 de Março, consternando milhares de fãs e sobretudo jovens que se revêem nas suas mensagens. No dia seguinte à sua morte, centenas de pessoas, sobretudo jovens, juntaram-se em Maputo numa vigília.
Durante as cerimónias fúnebres do chamado ‘rapper’ do povo, que juntou milhares de pessoas na capital moçambicana, em 14 de Março, o cortejo foi bloqueado por blindados e polícia fortemente armada num ponto do percurso que passaria em frente à residência oficial do Presidente da República.
Houve momentos de tensão e chegou a ser disparado gás lacrimogéneo para dispersar a multidão, que teve de recorrer a uma via alternativa.
Na sequência desta e outras iniciativas de homenagem a Azagaia, várias pessoas foram feridas, o que motivou críticas de organizações nacionais e internacionais à repressão policial de manifestações consideradas pacíficas.
“Para morreres basta dizeres o que pensas”. A nossa memória de Azagaia. Reproduzimos um artigo publicado no Folha 8 em 29 de Dezembro de 2017, de que é autor o também emblemático activista angolano Sedrick de Carvalho:
«O cantor moçambicano Azagaia, na sua última música gravada, intitulada «No sétimo dia», descreve as causas de morte mais frequentes na terra de Samora Machel. A música foi escrita em reacção à morte do presidente da cidade de Nampula, Mahamudo Amurane, morto sete dias antes da gravação.
Amurane, como outros moçambicanos, foi assassinado a tiro no dia 4 de Outubro, precisamente no dia da comemoração do 25.º aniversário do Acordo Geral de Paz do país. Foi baleado defronte a sua residência, ou seja, na rua, como morrem muitos críticos ao regime moçambicano, e que faz lembrar os filmes de Hollywood com pistoleiros no faroeste.
Mas Azagaia tem uma explicação para essas mortes em plena luz do dia que nada tem de ficção:
«Matam-te à noite/mas quando te matam de dia/É pra pagares o preço da tua rebeldia».
Assim morreu também o professor catedrático de Direito Constitucional Gilles Cistac, baleado pelas costas nas ruas de Maputo. Logo pelas costas!
Além de mortes por tiros, Azagaia indica outras formas de morrer. Também se morre antes de ter nascido, “na barriga da tua mãe com um comprimido”. Neste caso, quem mata é a mãe ou um desconhecido. O aborto em Moçambique não é considerado crime desde a criação, em 2015, duma lei que despenalizou o acto até a 12.ª semana de gestação. A descriminalização foi louvada principalmente por organizações feministas, pois, anteriormente, “11% das mulheres que se submetem ao aborto morrem devido às complicações causadas pela interrupção da gravidez em centros clandestinos”, escreveu Natália da Luz, editora do Por Dentro de África, citando dados de ONGs que atuam no país.
O “desconhecido” que te mata “com a mesma tesoura que ia cortar o teu umbigo” pode ser uma referência que o músico faz ao índice de mortalidade materno-infantil que, segundo dados da OMS/UNICEF divulgados no dia 12 de Dezembro, ocupa a 24.ª posição no ranking mundial, evidentemente sete lugares depois de Angola – 17.º.
E por isso mesmo Azagaia acrescenta: “pra morreres, pode ser no parto/Porque o pito da tua mãe não pagou o quarto/Ninguém atendeu depois dela ter gritado/Morreste ali na pia, ela sentada de quatro”. A corrupção no sistema de saúde como causa para desprezo na assistência hospitalar.
A taxa de sero-prevalência por HIV/SIDA em Moçambique também é uma das principais causas da morte naquele país do Índico que conta, segundo o citado relatório da OMS, com quase dois milhões de pessoas infectadas com o vírus. Ou seja, para estas pessoas os seus “dias tão contados”.
E o número de infectados multiplica-se, como os índices assim indicam, daí que Azagaia sabe que “pra quem já perdeu a vida não encontra um motivo pra se esconder da morte atrás de um preservativo”.
Mas o feitiço também consta da lista de Edson da Luz, nome oficial do rapper. Alguns pais, ávidos por promoções no trabalho e dinheiro, entregam os filhos ao obscurantismo em troca “como sacrifício aos ossos do ofício”.
A liberdade de expressão custa imenso desfrutá-la em Moçambique, daí que até Azagaia a dada altura anunciou que ficaria em silêncio para não ser impedido de ver os seus filhos crescer com uma bala à luz do dia. Já havia lançado dois discos, nomeadamente, Babalaze e Cubaliwa, onde acreditava que neles tinha dito tudo que deveria sobre Moçambique.
Azagaia ficou em silêncio por alguns anos, pois sabe que “pra morreres basta dizeres o que pensas”, e se publicamente “defendes as tuas crenças, matam-te com as tuas crenças”.
O cenário de intimidação e perseguição aos activistas continua, como contou recentemente o activista moçambicano Baltazar Fael, do Centro de Integridade Pública de Maputo. Pelo trabalho que o CIP desenvolve, as ameaças provenientes de sectores do país com responsabilidades de dar seguimento às denúncias feitas pelo organismo cívico.
É desta forma que até “juízes morrem por lerem sentenças”. Uns morrem sem aprenderem a ler. E em alguns casos, os mortos, diz-nos Azagaia, são transformados em heróis dos que os mataram. Talvez seja esse o traço comum que atravessa as mortes desde o assassinato de Samora Machel – quem matou diz que o morto é um herói. Com isto, Azagaia tem consciência de que os assassinos de Mahamudo Amurane estão entre as pessoas que dizem, agora, que o edil de Nampula é um herói moçambicano pela sua verticalidade.
“Matam-te a rir, depois dum convívio/E nem precisas ser presidente d’um partido/Matam-te por seres presidente de um município”, finaliza o autor do «Povo no poder».